Hoje recebi da minha amiga Margarida o texto publicado na Folha de S. Paulo, de autoria de João Pereira Coutinho: Restaurantes não são santuários e logo uma série de imagens me passaram pela frente.
O artigo tem muito humor, mas concordo com muito do que lá se diz.
Exceção feita no final onde o autor parece que lamenta a falta de garrafas por cima da mesa, onde está a ser servida a refeição. Isso não. Garrafas na mesa, nunca. Nem no restaurante nem em casa. Não tenho nada contra o vinho, bem pelo contrário... só sou contra as garrafas.
Realmente a importância dada hoje em dia aos restaurantes e aos chefs, subiu a um patamar irritante. Não há canal de TV, que se preze, que não apresente diversos programas e concursos de culinária.
Eu, por mim, a utilização em excesso do termo chef, perdoem-me os cozinheiros, transporta-me às reuniões de Conselho de Turma, em que havia sempre uma psicóloga a sugerir um programa de cozinha para os alunos com dificuldades de aprendizagem. Só precisavam de não chumbar a mais uma disciplina, pelo que os professores da turma, habitualmente, concordavam... Um bom professor quer sempre o bem dos seus alunos e, já agora, avisem para onde vão trabalhar... (e lembro-me daquele 6ºC, ou anos antes o 7ºB e também C, que apanhei no regresso ao ensino, em 2008..).
O ano passado ficámos hospedados num hotel na Jamaica...Enquanto nos arrumavam as malas, explicaram o funcionamento dos restaurantes, a maior parte deles tão especiais, que requeriam uma reserva. E lá o empregado nomeou o diferente tipo das comidas servidas. Lembro-me de uma "fusão". Como depois disse o meu marido: "Até aqui?". Com medo do que nos pudesse ser servido, pois o nome apela a laboratório, jantámos descansados no quarto... uma daquelas ementas "caseiras" do "room service"...
Perante esta reflexão aconselho a leitura do artigo enviado pela minha amiga, que traduz bem o que eu e o marido pensamos acerca desta nova moda, a qual, como todas, passou a ser excessiva e ridícula, como o autor bem sublinha:
"Restaurantes não são santuários
Estou cansado da religião dos chefs: restaurantes não são santuários
O melhor restaurante do mundo? Ora, ora: é o Eleven Madison Park, em Nova York. Parabéns, gente. A sério. Espero nunca vos visitar. Entendam: não é nada de pessoal. Acredito na vossa excelência. Acredito, como dizem os críticos, que a vossa mistura de "cozinha francesa moderna" com "um toque nova-iorquino" é perfeitamente comparável às 72 virgens que existem no paraíso corânico.
Mas eu estou cansado da religião dos chefs. Vocês sabem: a elevação da culinária a um reino metafísico, transcendental, celestial. Todas as semanas, lá aparece mais um chef, com a sua igreja, apresentando o cardápio como se fossem as sagradas escrituras.
Os ingredientes não são ingredientes. São "elementos". Uma refeição não é uma refeição. É uma "experiência". E a comida, em rigor, não é comida. É uma "composição".
Já estive em vários desses santuários. Quando a comida chegava, eu nunca sabia se deveria provar ou rezar. Os meus receios sacrílegos eram acentuados pelo próprio garçom, que depositava o prato na mesa e, em voz baixa, confidenciava o milagre que eu tinha à minha frente:
– Pato defumado com pétalas de tomate e essências de jasmim.
Escutava tudo com reverência, dizia um "obrigado" que soava a "amém" e depois aproximava o garfo trêmulo, com mil receios, para não perturbar o frágil equilíbrio entre as "pétalas" e as "essências".
Em raros casos, sua santidade, o chef, aparecia no final. Para abençoar os comensais. No dia em que beijei a mão de um deles, entendi que deveria apostatar.
E, quando não são santos, são artistas. Um pedaço de carne não é um pedaço de carne. É um "desafio". É o teto da Capela Sistina aguardando pelo seu Michelangelo.
Nem de propósito: espreitei o site do Eleven Madison Park. Tenho uma novidade para dar ao leitor: a partir de 11 de abril, o Eleven vai fazer uma "retrospectiva" (juro, juro) com os 11 melhores pratos dos últimos 11 anos.
"Retrospectiva." Eis a evolução da história da arte ocidental: a pintura rupestre de Lascaux; as esculturas gregas de Fídias; os vitrais da catedral gótica de Chartres; os quadros barrocos de Caravaggio; a tortinha de quiche de ovo do chef Daniel Humm.
Gosto de comer. Gosto de comida. Essas duas frases são ridículas porque, afinal de contas, sou português. E é precisamente por ser português que me tornei um ateu dos "elementos", das "composições" e das "essências". A religião dos chefs, com seu charme diabólico, tem arrasado os restaurantes da minha cidade.
Um deles, que fica aqui no bairro, servia uns "filetes de polvo com arroz do mesmo" que chegou a ser o barómetro das minhas relações amorosas: sempre que estava com uma namorada e começava a pensar no polvo, isso significava que a paixão tinha chegado ao fim.
Duas semanas atrás, voltei ao espaço que reabriu depois das obras. Estranhei: havia música ambiente e a iluminação reduzida imitava as casas de massagens da Tailândia (aviso: querida, se estiveres a ler esta crónica, juro que nunca estive na Tailândia).
Sentei-me. Quando o polvo chegou, olhei para o prato e perguntei ao dono se ele não tinha esquecido alguma coisa. "O quê?", respondeu o insolente. "O microscópio", respondi eu.
Ele soltou uma gargalhada e explicou: "São coisas do chef, doutor." "Qual chef?", insisti. Ele, encolhendo os ombros, respondeu com vergonha: "O Agostinho". O cozinheiro virou chef e o meu polvo virou calamares.
Infelizmente, essa corrupção disseminou-se pela pátria amada. Já escrevi sobre o crime na imprensa lusa. Ninguém acompanhou o meu pranto.
É a música ambiente que substituiu o natural rumor das conversas. É a iluminação de bordel que impede a distinção entre uma azeitona e uma barata. É o hábito chique de nunca deixar as garrafas na mesa, o que significa que o garçom só se apercebe da nossa sede "in extremis" quando existem tremores alcoólicos e outros sinais de abstinência. Meu Deus, onde vamos parar?
Não sei. Mas sei que já tomei providências: no próximo outono, tenciono aprender a caçar. Tudo serve: perdiz, lebre, javali. Depois, com uma fogueira e um espeto, cozinho o bicho como um homem pré-histórico.
O pináculo da civilização é tortinha de quiche de ovo do chef Daniel Humm? Então chegou a hora de regressar às cavernas de Lascaux."
João Pereira Coutinho* in Folha de S. Paulo, 11/4/ 2017
* Escritor Português. È doutor em Ciência Politica. Escreve às terças e às sextas